Nos meus “20 Forever”, fui morar em Brasília, terra desconhecida até então, nenhuma amiga, nada de parentes, “se virar” era a senha. Distante a hora e meia de avião, mesmo país, língua, costumes, cultura, não entendi até hoje o porquê de tanto alarde: foi, literalmente, um acontecimento a minha ida, sabem como é família mineira pra desgarrar… Me senti partindo pra sempre, dramalhão mexicano, parentes despedindo como se fosse a “derradeira vez”. O lado bom foi que ganhei presentes incríveis, numa procissão inesquecível de afeto: um a um, cada um levou-me seu melhor quinhão.
Eram acessórios para casa, livros preciosos para me fazerem aquela companhia, santos protetores e por aí vai. Mas nada foi mais carinhoso, sui generis e até providencial que uma coletânea de cadernos , sobre assuntos domésticos, escritos à mão por minha hilária mãe, contendo os “segredinhos das Gonçalves” e dividido em 3 volumes.
No primeiro, ela passeava pelo assunto “casa” e sua organização, tecendo os comentários mais pertinentes, dando conselhos que iam dos variados modos de arrumar uma mesa, organizar cardápios, orientar funcionários e por aí vai… Mas a minúcia dos detalhes era tanta que acabou virando leitura obrigatória por ser cômica, para divertir familiares quando vinham me visitar. Infelizmente, o vento levou-o numa de minhas muitas mudanças.
O segundo volume, que é tema deste post, estava esquecido mas a salvo: o livro das receitas que Sonia Gonçalves Bittencourt reuniu ao longo da vida, selecionando-as entre as de sua mãe, irmãs e irmãos, primas, amigas, parente da conhecida, cunhada da desconhecida, todas D.O.C (De Origem Caseira), até juntar mais de 500 páginas manuscritas.
Assim, contém os mais variados pratos, das mais diversas procedências, TODOS testados por ela previamente, formando um exemplar, bem completo, do “receituário gastronômico” da cozinha trivial brasileira do século XX. Posso dizer que é quase uma crônica dos hábitos alimentares da gerações pré Adria, quando conceitos como “espuma”, “leito” ou “crosta” eram normalmente assossiados a “sabão”, “local de dormir” e “superfície terrestre”, na sequência. No entanto e apesar da pouca técnica, as receitas são deliciosas pois têm um temperinho caseiro que até eu havia esquecido. Assim, para não desmerecer o presente e sua louvável tecnologia, exaltemos a singeleza do passado descrito neste caderno, dando lhe o título vintage, com louvor!
O terceiro volume era cria do segundo e a ele estava atrelado, até seu último suspiro: também perdeu-se, uma pena. Pois reunia mais de 500 “menus” baseados nas receitas do caderno, combinando-as segundo a ocasião proposta por ela no título. Assim, sugeria: “Almoço para muitos”, “Jantar de cerimônia para poucos”, “Coctail souper”, “Brunch no jardim” e lá vinha sugestão de salgadinho seguido de entrada, segundo prato, sobremesa, na quantidade que o prenúncio exigia, misturando pratos com muita sapiência e bom gosto, enumerando a página onde encontrar, no livro… Era abrir e colar, simples assim.
Enfim, muitas lembranças, que espero não tenham cansado os que chegaram até aqui. Mas, depois de varar a noite me reencontrando com o guia e salvador da minha pátria, nas minhas épocas no cerrado, resolvi começar a fazer as receitas do caderno de minha mãe, junto com minha querida Irene “bien sûre, e quando aprovadas pelo povo aqui de casa, pensei em reproduzí-las para vocês, caso se interessem… O que acham? E, talvez num futuro, tentar misturar, sem o mesmo talento, alhos e bugalhos pra ajudar nos cardápios do nosso dia a dia. BN